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O Homem de Sal

Foto do escritor: poetadohorizontepoetadohorizonte

Atualizado: 22 de ago. de 2023



Foi dia, ou menos dia, que ouvi uma história ecoando, um contador fácil numa cidade próxima, algo lembrando que a cidade natal por vezes não pode nascer em nós, e se precisa ir a um reino distante para ecoar as lembranças, fiquei olhando como se pudesse viver mais naquelas palavras, elas tinham um quê do Infinito, desse Nada, mas era um contador de histórias, talvez a serviço de algo que não pude entender naquele momento, mas ele estava cravado no coração do Divino, porque suas palavras tinham um cheiro, tinham um sabor, um quê de além do além que nunca tinha experimentado, e ali tive uma transformação sem crença, era eu mesmo nas palavras do contador de história que trouxe de um modo atordoante a história do Homem de Sal, tal qual nunca pude entender ao certo todas as camadas, mas elas aterrizaram fundo no frio da minha impermanência, e o sal estava completamente diluído, por isso fingia não estar ali na água, mas era parte da água que um buscador sedento não pode tranquilamente beber, porque tinha se dissolvido... A história, e aqui ela vai aos atropelos porque fui invadido naquele momento, e até a lembrança da história é turbada, mas cabe falar o quanto meus poros puderam absorver desse Sal da Terra... Um homem era feito completamente de sal, o que gerou suas maiores tormentas, e aqui me vejo como esse sal que o Mestre quis dissolver. Por ser de sal, suas buscas eram completamente diferentes dos homens ditos "comuns", afinal, um homem de sal não busca alimento, mas sim salgar na medida correta para alimentar os outros. E ainda, o sal é um elemento invisível depois de feito o alimento, mas seu invisível é determinante se a comida será bem apreciada ou não. Esse homem de sal refletia e espargia em perfeição a luz que o Sol trazia nos dias, e isso atrapalhava a visão cotidiano dos trabalhadores de onde morava. Ser de sal não era fácil a esse homem que começa a sentir um certo desamparo por ter sido feito dessa forma, afinal, que adiantava dar de comer perfeitamente, equilibrando as trocas dos corpos, espargir luzes cravadas durante o dia no seu corpo inteiro, e ser rejeitado, escorraçado dos grupos que não partilhavam do seu modo de ser e ver o mundo, que era de sal... Estava questionando toda a criação e toda a existência de por qual motivo teria o trazido dessa forma salar, como se o Deserto salar fosse ele mesmo, criando e invadindo miragens e pequenos oásis em instantes, mas a grande turbação era quando lhe pedia água, porque a boca humana quer sal na comida, jamais, ou quase nunca, na água... Ele gerava mais sede nos homens. Seu Destino parecia inglório, e começou a querer o fim daquela existência, e uma outra mais carnal, mais simples, mais muscular, para compartilhar uma vida mais simplificada com os homens, e via neles a felicidade das conversas trocadas nas refeições, via neles a felicidade de compartilhar momentos de amizade, e até nas supostas brigas o calor do coração dando novos entendimentos, porque com ele o coração de sal não pulsava o sangue febril dos homens, pulsava a luz irradiada que chegava nele, seu coração era todo das luzes de fora. Como pode a felicidade morar num coração que a luz venha de fora? Assim pensou o homem de sal em seu dilema mais atordoante e verdadeiro. Seu rosto já nem tinha expressão, estava escavado em si mesmo das lágrimas que nem sequer podia chorar. Nessa tormenta dolorida de não se compreender, buscou num resquício de emoção salgada, a pulsão que podia inventar uma nova vida, e um sopro de uma voz distante, que mal chegou a ouvir, mas como estava bem quieto após a revoada das emoções, conseguiu compreender alguma coisa tão enigmática e o fez paralisar: "Vá para a praia". Não era uma imposição, era uma voz sutil, fácil e até melodiosa de se ouvir, embora ecoasse distante, e esse homem de sal viu seu coração cristalino brilhar, e até pulsar algo que nunca sentira, como se os poros de seus cristais pela primeira vez tivessem ganhado não só a luz de fora, mas o brilho que seu coração adormecido sequer desconfiava que existia. Mas sim, sempre existe o coração de tudo... O Nada... Ele assim resolveu que era premente cumprir o que sequer era uma ordem, mas uma sugestão que pela voz parecia perfeita e retumbante. Como sempre era desprezado e apenas dava de comer, ele percebeu que sequer tinha dinheiro para sua empreitada de sal, nunca tinha trabalhado "normalmente" como os outros homens em suas buscas cotidianas, e foi perguntar desesperadamente se alguém o podia levar à praia. Novamente foi rejeitado veementemente por todos que abordou, "Por que iria ajudar este homem de sal?" era um pensamento quase unânime. Novamente a voz, agora não tão distante, sussurrou perfeitamente com uma voz que o homem de sal nunca ouvira entre as pessoas com quem conviveu: "Venda partes do seu corpo, seu sal é raro, vale muito no mercado da cidade, mas encontre o vendedor certo". E aqui a história vai ganhando novos ares, porque o homem de sal, estava vivendo algo que sequer sonhara, e ao mesmo tempo não tinha a menor ideia de como saber quem era esse vendedor certo, e para piorar sentiu uma pontada no seu sal de coração, porque aquilo queria dizer que pela sua ignorância ele doou seu sal raro para homens que sequer perceberam seu valor ao longo de sua vida? Que tinha alimentado pessoas que sequer notavam sua raridade e real valor? Como podia ter sido desprezado tantas vezes? Como pode o olhar da ignorância quebrar tantas horas da vida? Mas percebeu que estava em um ponto genuíno e verdadeiro de inflexão, por isso não valia nada lamentar as incoerências e loucuras alheias, agora o que importava era ir à praia. Foi ao mercado e perguntou por vendedores de sal, o que o fez desanimar um pouco, porque disseram que quase todos os vendedores naquele mercado tinham sal para vender. E foi observando o mercado, com atenção, e percebeu detalhes pela primeira vez, como estava atento em busca do "vendedor certo", percebeu detalhes curiosos de como os vendedores planejam e faziam suas vendas, percebeu detalhes de gestos, de expressões e achou aquilo muito rico, começou a se deslumbrar com atos que antes lhe pareciam pobres e banais, mas que verdade está toda a vida ali pulsando. E andando pelo mercado viu um homem brincando com um pouco de sal e achou curioso, olhou mais atentamente ele parecia estar vendo as luzes atravessando o sal, parecia um bobo, ou louco, mas irradiava uma felicidade inexplicável, e isso fez chamar o homem de sal, que logo também pela peculiaridade de ser de sal chamou a atenção daquele vendedor. Logo o homem de sal percebeu que era aquele vendedor, mas o vendedor ter dito esta frase selou a sua certeza: "O que está procurando hoje é algo certo, correto?" com uma leve piscada de olho, intrigando ainda mais o homem de sal. O homem de sal explicou que queria vender um pouco do seu sal porque era raro para fazer uma viagem à praia. O vendedor ficou olhando algum tempo em silêncio, como que petrificado pelo olhar de sal, até que levantou os olhos e puxou do ar que parecia que ia faltar para dizer: "De vista, eu só vi seu sal uma única vez em minha vida, em um deserto salar que fez minha alma transcender... Peguei com uma faquinha um pouco daquele sal porque não conseguia levar muito, e provei, e descobri que minha saúde tinha sido restabelecida integralmente, por isso, preciso provar um pouco do seu sal para ter certeza de que você é do mesmo sal que trouxe a Vida...". O homem de sal pensou que isso nem seria um problema, tinha dado pedaços maiores de si por pessoas que não levaram a bons caminhos, e logo tirou um pedaço da mão, e quando o vendedor provou ele enlouqueceu, queria desfazer o homem de sal inteiro para si, porque além de tudo ganharia muito dinheiro. O homem de sal declinou de tudo, precisava ir à praia, que tinha um certo "compromisso" lá, mas que aceitava dar um pedaço grande de sua barriga, afinal, não comia mesmo. Os tratos foram feitos e o dinheiro dava e sobrava ao homem de sal para seguir sua viagem à praia. Transporte providenciado, qual não foi o deslumbre ao ver a areia, e pela primeira vez em contato com a areia da praia sentir seu corpo ressoar, como uma mensagem clara: "Você está onde precisa estar para se curar". Aos poucos, viu pescadores e homens simples buscando barcos, peixes, e outras coisas que ele nunca tinha visto. O horizonte parecia acolher sua vida, o sal parecia até maior que qualquer comida ofertada aos homens, e estava percebendo e aprendendo lições silenciosas e que nada podia dizer, e neste exato momento agora uma voz extremamente próxima, colada ao ouvido proferia: "Ache a sua pérola", e novamente, embora confiante, ficou espantado porque não sabia se ali existiam pérolas para serem buscadas, mas começou a perceber que a palavra da vida era confiança... Ele olhou ao redor e perguntou sobre e dos pescadores, e em uma conversa breve descobriu que tinha apenas um homem que buscava pérolas, e logo o homem de sal o achou e ensinou os macetes para ir mais ao fundo e encontrar a preciosidade. Mas o que o homem de sal não contava, ou não se atinou no calor da emoção é que ao iniciar sua entrada no mar, começou a desmanchar sua perna e ele inteiro caiu no mar, sendo dissolvido em poucos instantes. O homem de sal tinha se tornado o próprio oceano, e partículas do seu sal tocaram após várias e várias revoluções de água, uma ostra que estava fazendo uma pérola, logo, algumas de suas partículas viraram pérola na metamorfose da Vida, e conseguiu nunca mais sentir solidão pois era o próprio oceano...

E a pérola foi achada pelo homem que deu as indicações e a vendeu mais barato do que queria para um em desespero para conquistar uma princesa daquele reinado, mas esta é outra história que ficará para um outro momento... Talvez quando o Homem de Sal a resolver contar...

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